‘Fé’ regista a prática do animismo na cultura moçambicana da atualidade. Este animismo é herdeiro de formas tradicionais de religião nas quais se acreditava existirem espíritos que habitam os objetos e os fenómenos da natureza: assim se explicava a influência dos espíritos dos antepassados na existência dos vivos. Através das suas práticas, estas religiões tradicionais preservaram as antigas tradições culturais de Moçambique. Tais práticas incluem ensinamentos, medicina tradicional, métodos de cura, ritos de passagem para os jovens (mulheres e homens) e aconselhamento sobre as condutas a observar entre os membros de uma comunidade. Refletem conceitos locais – mas por vezes contraditórios – de Deus e do cosmos.
Numa mesma comunidade, pode haver diferenças de perceção do que é e do que não é sobrenatural. Apesar de serem predominantes as religiões propagadas pelo catolicismo, protestantismo, islamismo e judaísmo, estas formas estrangeiras de religião não anularam por completo as tradicionais práticas moçambicanas. Se é verdade que cerca de metade da população de Moçambique pratica as crenças animistas tradicionais, há vários grupos monoteístas que, simultaneamente, crêem nas explicações tradicionais do espiritismo. Por isso é frequente encontrar uma espécie de sincretismo religioso – a incorporação de crenças tradicionais nas religiões estrangeiras predominantes; assim como o inverso – motivos visuais ou ritualísticos das predominantes religiões estrangeiras monoteístas nas práticas das crenças tradicionais.
A prática da medicina tradicional e a administração de medicação tradicional constitui uma parte considerável destas crenças religiosas. Daí que o Ministério da Saúde de Moçambique tenha recentemente autorizado a criação do primeiro Instituto de Medicina Tradicional. O facto de o Governo ter fundado este órgão não é apenas um modo de regular a medicina tradicional: é também o sinal de que apoiam e reconhecem nele uma forma de promover as culturas tradicionais, o que leva a desenvolver o conhecimento da cultura identitária local, das suas tradições e das suas origens.
Além de tudo o mais, estas atividades religiosas contribuem para a economia local e incentivam o desenvolvimento social, uma vez que a maioria dos praticantes vive em zonas rurais, no interior ou em povoações sem acesso à saúde pública. Ao mesmo tempo, sempre que as instituições governamentais descuram o mandato que têm de cuidar dos cidadãos, encoraja-se a fé enquanto fonte primeira a que se recorre para congregar a força dos milagres e a vontade de ultrapassar as circunstâncias mais adversas. Reivindicar e promover esta consequente resiliência das instituições governamentais é um erro crasso: tais reivindicações minimizam as responsabilidades estruturais, infraestruturais, institucionais e políticas que essas instituições têm perante as populações; por seu lado, este abandono institucional resulta num empobrecimento sistemático da cidadania.
No animismo – e talvez na maioria das práticas de outras religiões –, o que se procura é dar coerência e sentido ao mundo. A cultura destas religiões tradicionais assenta numa mundividência de estrutura definida, que tenta ligar as coisas entre si, estabelecer elos de ligação. Por isso se afirma que, em última análise, todos os seres humanos são religiosos, já que a religião se define, num sentido lato, como um impulso de procura pela coerência e pelo sentido das coisas. A força deste impulso varia enormemente de cultura para cultura e de pessoa para pessoa.
Ao contrário da crença em religiões como o cristianismo, que apresentam de forma nua e crua a subjetividade dos crentes, as fotografias de ‘Fé’ entendem que os seguidores destas religiões tradicionais acrescentam matéria e material à subjetividade de cada crente. Por exemplo, os sujeitos retratados estão cobertos de substâncias e elementos como sangue, farinha, cinzas, lama e água. Metaforicamente, este acréscimo de material aplicado sobre a pele do crente confere-lhe um ponto de contacto entre o ambiente material e o ambiente espiritual. No mesmo passo, esta cobertura serve-lhe de abrigo. É uma superfície que enceta uma útil querela com as condições do abandono institucional, nomeadamente quando este é redefinido como apelo à ‘resiliência’ – mas aquilo que surge nestas obras fotográficas é a organização de um espaço que convida à conversão e a uma entrada na correspondência entre as matérias da cultura e da vida local.
Neste compromisso fotográfico com o controverso fenómeno da fé, aquilo que está em causa não é tanto uma questão da própria fé, mas é antes matéria de um ato, de um passar à ação. Ao mesmo tempo que a emergência das religiões estrangeiras converte a maioria da população em Moçambique, as tradicionais crenças religiosas ocupam ainda um lugar relevante na atual vida quotidiana dos moçambicanos. Talvez um olhar dirigido aos valores da religião seja uma forma de consulta à vida. Trata-se de uma simulação da vida – as pistas dadas nas fotografias da série ‘Fé’ convidam a entrar nela por outros meios.
Mário Macilau